quinta-feira, 11 de junho de 2015

Experiência Brasileira nas Nações Unidas




Em 1926, o Brasil deixou a Liga das Nações, em condições traumáticas, por não haver sido aceita sua aspiração de ocupar um assento permanente no Conselho desta. 

O Brasil perdeu queda de braço para a Alemanha, potência vencida na Primeira Guerra Mundial. Manteve, porém, laços com a aquela organização, inclusive no que diz respeito ao tratamento de temas especializados.

Na fase final da Segunda Guerra Mundial, o Brasil esteve representado nas negociações que culminaram com a adoção da Carta de São Francisco, que estabeleceu as Nações Unidas. 

A Carta, ressalte-se, é essencialmente produto da diplomacia das grandes potências vitoriosas, em especial dos EUA. Embora contasse com expressivo número de membros, a América Latina detinha escasso poder de negociação. 

Convém não perder de vista o acanhamento político e a escassez de perspectivas do próprio Brasil, e das nações latino-americanas, como países de dependentes de economias agrárias e extrativistas, diante do primado das grandes potências.

Por um lado, a Carta representa um salto de qualidade, em comparação com o Pacto da Liga, em termos de organização da ordem internacional; por outro, traz os vícios de origem de uma negociação feita sob o constrangimento das relações de poder necessariamente dominantes nos períodos de guerra ou de imediato pós-guerra.

O reingresso da diplomacia brasileira no plano multilateral se fazia ainda sob certas condições desfavoráveis, como os traumas do passado, do isolamento recíproco – e das ocasionais rivalidades – com vizinhos latino-americanos, do provincianismo agroexportador e a necessidade última de manter a aliança forjada com os EUA, potência hegemônica mundial e hemisférica. 

Tal aliança, que era emblemática do realismo político induzido pela recente guerra, valia como fator de influência regional e de expressão mais ampla no cenário mundial. 

A síntese dessa situação se encontrava numa singela diplomacia de prestígio, que fincava raízes no período monárquico e na Primeira República, e que, com certeza, já enfrentava desilusões no quotidiano da política internacional.

A formação de uma visão clara dos principais ideais e objetivos que moveram a atuação da delegação brasileira desde a fundação da Organização foi muito facilitada pela edição, por ocasião do cinquentenário das Nações Unidas, do livro A Palavra do Brasil nas Nações Unidas (1946-1995), que reúne os pronunciamentos brasileiros na abertura do debate da Assembleia Geral. 

O apresentador desses textos, Embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, identifica na Organização uma combinação de necessidade e esperança, razão e ilusão, realidade e utopia. 

Acentua que para a ONU convergem as pressões e contrapressões de um sistema internacional tendencialmente anárquico; e nela se articulam coalizões e configurações de poder, impulsiona-se o processo decisório internacional e adotam-se determinações que introduzem elementos normativos e cooperativos na ordem mundial.

Seixas Corrêa data da II Conferência de Paz da Haia, em 1907, o início da participação do Brasil nos processos da diplomacia multilateral mundial e traça uma linha de continuidade que a une à atuação na Liga das Nações e, posteriormente, nas Nações Unidas. 

Sob a liderança de Ruy Barbosa, nota Seixas Corrêa, o discurso brasileiro foi “afirmativo e reivindicatório”, e dele derivam “pelo menos dois paradigmas seguidos desde então pela diplomacia brasileira: o da singularidade (do Brasil) e o do respeito ao Direito Internacional”. Sobre este último comenta que: “Vem (...) da Haia a pretensão do Brasil de atuar no concerto das nações não com o peso de suas armas ou com eventuais ambições de potência, mas com a força de suas razões e a ascendência de seu Direito”.

Acrescente-se que as aspirações do paradigma barbosiano da Haia, ainda que este seja raramente mencionado, credencia Ruy Barbosa para a posição de patrono da diplomacia multilateral brasileira. 


Nos discursos brasileiros nas Nações Unidas, é possível encontrar uma combinação de preocupações éticas e políticas, num quadro de respeito às tradições nacionais e de busca de transformações no plano mundial. A menção de uns poucos pontos permite que se entenda traços básicos da experiência do Brasil no plano multilateral, em especial nas Nações Unidas.

Desde o primeiro discurso, em janeiro de 1946, quando já se esboçavam a guerra fria e a bipolaridade, e havendo sido o Brasil recém-eleito para a posição de membro não permanente (biênio 1946-47) do Conselho de Segurança, o Embaixador Luiz Martins de Souza Dantas registra que o Brasil: “Nunca deixou de trabalhar para a paz e tem a satisfação de ter sido a primeira nação a introduzir em sua Constituição uma cláusula que prescreve que prescreve a arbitragem compulsória para todos os conflitos internacionais”.

E assevera que: “Seu único desejo (na Segunda Guerra Mundial) foi o de servir a causa da paz internacional e da segurança coletiva”.

Souza Dantas orienta explicitamente seu discurso pelo princípio da causa comum da humanidade (communis humanitatis causa) e, nesse espírito de universalismo e equidade, pede que as Nações Unidas sejam “uma verdadeira assembleia de nações” e que se fundamentem tanto nos ensinamentos de Cristo, Maomé, Buda e Confúcio, quanto na contribuição dos meios laicos de todos os países. 

Poucos meses depois de Hiroshima e Nagasaki, comenta que: “o homem se prepara para manejar uma energia cósmica e (...) poderá ser tragado por ela”. De forma presciente, observa que: “ainda por algum tempo as armas secretas provenientes dessa energia poderão permanecer ocultas. Mas seria leviano pensar que se trata de uma solução definitiva: descobertas científicas não são privilégio de um único povo ou grupo”.

E conclui que: “essas descobertas irão surgir simultaneamente em várias mentes”.

Já na segunda sessão da Assembleia Geral, em 1947, quando se desencadeavam os primeiros episódios ligados à guerra fria, o Embaixador João Carlos Muniz deu ênfase à conciliação como “característica essencial do povo brasileiro” e afirmou que “o histórico de nossa participação na vida internacional é precisamente um histórico de conciliação de ideias e influências opostas, com o propósito de promover o progresso nas relações internacionais através da persuasão”.

Essa ênfase, nem sempre bem entendida no próprio Brasil, por si só singularizava o país no diálogo parlamentar em curso nas Nações Unidas. 

Igualmente é esse o momento em que a delegação brasileira começa a acentuar a necessidade da cooperação internacional e os obstáculos que a ela se antepõem, a tese de que o Conselho de Segurança funciona mal e a da adoção de meios práticos que disciplinem o uso do direito de veto (o que, no contexto, significaria uma limitação prática ao exercício daquele instrumento por parte da URSS, mas que hoje dirigiria muito mais aos EUA do que à Rússia) e, mais genericamente, o fato de que as Nações Unidas não estavam atingindo seu objetivo principal de assegurar a paz e a segurança internacionais.


O Brasil se apresenta nas Nações Unidas plenamente ciente dos fatores básicos que o vinculam à comunidade internacional, a saber: antes de mais nada, dedicação à paz mundial e da região, fidelidade aos compromissos assumidos na Carta e longa tradição de promoção de relações harmoniosas entre os Estados e de convivência com seus vizinhos.

Conhece e vive o Brasil, também, os traços que o distinguem entre as nações, tanto no plano interno, quanto os que lhe delineiam o perfil de atuação internacional, como suas dimensões demográfica, territorial, política e econômica; a variedade étnica; a heterogeneidade econômica e social; as discrepâncias na distribuição da renda; e, no nível externo, sua profunda ancoragem regional e sub-regional; projeção sul atlântica; e interesses como global trader e, crescentemente, como ator global.

O Brasil sempre esteve entre os países voltados para a mudança nas Nações Unidas; sempre soube prestar sua contribuição ao esforço para fazê-las mais abertas e equitativas, mais transparentes e sensíveis aos reclamos de nosso tempo. 

Desde São Francisco, são perceptíveis os temas dominantes da atuação a longo prazo do Brasil nas Nações Unidas: o funcionamento do Conselho de Segurança, a reforma da Carta e o desenvolvimento econômico e social.

Membro fundador, participante na luta contra a tirania nazifascista, o Brasil chegou a ser considerado em São Francisco como um possível membro permanente do Conselho de Segurança. Desde então, fez-se operosa e criativamente presente nas grandes deliberações multilaterais. 

O Brasil nunca foi espectador desatento ou desinteressado, mas sim visível participante nas atividades das Nações Unidas. Cumpriu dez mandatos como integrante eletivo do Conselho de Segurança – número recorde juntamente com o Japão – inclusive cinco vezes após o fim da guerra fria, o Brasil acumulou um conhecimento privilegiado acerca dos modos de funcionamento dos círculos decisórios mundiais. 

O Conselho, encarregado – como diz a Carta –, da responsabilidade primária pela manutenção da paz e segurança internacionais, certamente espelha o funcionamento desses círculos no plano multilateral.


Igualmente, o Brasil sempre teve atuação de vanguarda na Assembleia Geral e no Conselho Econômico e Social e em suas respectivas comissões funcionais e, ainda, nas grandes conferências internacionais, o que lhe permitiu exercitar as práticas parlamentares e aproveitar as oportunidades políticas inerentes à diplomacia multilateral.

Não foram nada fáceis para a comunidade internacional, inclusive o Brasil, os primeiros anos das Nações Unidas. Os temas da guerra fria monopolizaram o ambiente político- -diplomático e contaminaram o discurso com o choque ideológico, a confrontação militar e a disputa política. 

A própria questão do desarmamento nuclear e convencional só vai tomar impulso realmente significativo, após os 13 dias de outubro de 1962 – a clara perspectiva de um conflito terminal entre os EUA e a URSS – a propósito dos mísseis soviéticos em Cuba. 

A dramática confrontação no Conselho de Segurança, em que Adlai Stevenson apresentou e Valerian Zorin procurou contestar provas fotográficas do posicionamento de tais mísseis, teve o dom de colocar a questão do armamento nuclear no topo da agenda multilateral e impulsionar a política de distensão internacional (détente) patrocinada principalmente pelos países da Europa ocidental. 

Em tempos mais recentes, no início do segundo conflito do Iraque, Colin Powell apresentou, no mesmo foro, supostas provas da presença de armas de destruição em massa, nucleares, químicas e bacteriológicas, no território daquele país.

Cada etapa da vida internacional, desde 1945, encontra ressonâncias na atuação diplomática brasileira nas Nações Unidas. 

A exemplo do que ocorreu com os demais países, nos anos iniciais das Nações Unidas, a guerra fria fortemente condicionou a participação do Brasil tanto na Assembleia Geral quanto no Conselho de Segurança, onde esteve representado em quatro períodos de dois anos, entre 1945 e 1964. 

Além disso, a preponderância hemisférica dos EUA e a precariedade de nossa base sub-regional, numa época em que o Brasil e a Argentina tinham dificuldades em acertar-se, foram fatores limitativos de monta.


Mais adiante, como assinalado, a détente leva a variados tipos de participação na área do desarmamento, desde a importante participação na Conferência de Desarmamento em Genebra, no grupo dos “não alinhados”, até a negociação de iniciativas regionais, das quais a mais saliente foi a desnuclearização da América Latina, consubstanciada no Tratado de Tlatelolco.

 A correlação entre o processo de desarmamento geral e completo, a estabilidade regional em matéria de armamentos e o fortalecimento das perspectivas da paz e da segurança passou a integrar o ideário da diplomacia brasileira, e a servir como ponto de referência natural e obrigatório para a crítica às lacunas, aos defeitos e desmandos da ordem internacional.

Nessa nova atmosfera, firmaram-se as bases conceituais e diplomáticas que, por inspiração do Embaixador João Augusto de Araújo Castro, permitiram a tomada de posição contrária ao Tratado de Não Proliferação das Armas Nucleares, o TNP, oposição esta que se manteve até 1997.

Ao lado disso, a aceleração do processo de descolonização, um dos momentos definidores da história do século XX, criou uma nova situação internacional, e uma nova situação parlamentar na ONU. 

Por essa via, o Brasil esteve presente à criação dos Estados que emergiram do regime colonial e da promoção da nova e democrática África do Sul. Participou de grandes embates diplomáticos e, apesar das dificuldades internas que conheceu, soube, em momentos críticos, tomar posições. 

Esse desempenho é ilustrativo da autenticidade da postura multilateral do Brasil, de sua correlação necessária com as vicissitudes e êxitos internos e do desenvolvimento de uma visão política e de um engajamento de escopo universaliza.


A preocupante situação socioeconômica interna e regional tornava claro, desde o final dos anos 1940, que a participação no tratamento da temática política nos foros multilaterais deveria vir acompanhada de atenção para a questão do bem-estar da sociedade. 

Não só era muito escassa a atenção internacional dispensada à problemática do atraso econômico, mas também era grande a dificuldade de encaminhá-la, numa fase em que falar de desenvolvimento ou de interesses financeiros de países em desenvolvimento nas Nações Unidas era, às vezes, razão suficiente para motivar perseguições de fundo ideológico. 

Foi lenta a travessia do foco das atenções mundiais da temática politicamente correta da reconstrução econômica da Europa para a polêmica relativa à inter-relação do desenvolvi- mento com o comércio internacional e as iniquidades no relacionamento Norte-Sul.

O Brasil esteve à frente desse processo, especialmente no contexto da preparação da I Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD). 

O impulso que havia sido dado ao país, no Governo Kubitschek, pela política de “Cinquenta anos em Cinco”, e pelo concomitante renascer da diplomacia brasileira com a Operação Pan-Americana, permitiram ao país assumir essa posição de vanguarda, capitaneado pelo Embaixador Jayme de Azevedo Rodrigues e executado por toda uma geração de brilhantes diplomatas.


Buscaram-se encontrar soluções multilaterais para os problemas da escassez de capital para investimento nos países pobres e para os efeitos perversos da estrutura de comércio internacional sobre o desenvolvimento daqueles mesmos países. 

Contribuiu fortemente para tornar viável essa postura diplomática a política que vinha sendo conduzida pelos Chanceleres San Tiago Dantas, sob o rótulo de política externa independente, e Araújo Castro, cujo ápice foi o famoso discurso dos “3D”, na abertura do Debate Geral da XVIII Assembleia Geral de 1963. 

Entre os muitos pontos altos dessa linha política, citem-se adoção de uma linha firme com relação à desastrada invasão de Cuba no episódio da Baía dos Porcos e o reatamento das relações com a União Soviética.

O subsequente agravamento dos problemas políticos internos levou a uma década de encolhimento diplomático e de tempos duros para o multilateralismo, nos quais o Brasil, pela primeira vez, votava com as minorias em todas as mais controvertidas questões na pauta das Nações Unidas (admissão da China Popular à ONU, situação nas colônias portuguesas na África e outras). 

Em grande parte do longo período dos governos militares o Brasil limitou sua participação no Conselho de Segurança (de 1969 a 1987, o Brasil esteve fora do Conselho).


Embora, com o Governo Geisel, as políticas de pragmatismo responsável e de não alinhamento automático com os EUA, preconizadas e conduzidas pelo Chanceler Azeredo da Silveira e sua equipe, revertessem essa situação e fossem aprofundadas na “política sem slogans”, mas universalista, desenvolvida por seu sucessor, Chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro, as consequências desse período perduraram no tempo, levando, por exemplo, a que o Brasil só pudesse voltar ao Conselho de Segurança em 1988.

As décadas do pós-guerra fria se caracterizam pelo esmaecimento da temática Norte-Sul, em grande parte em função do fracasso, por oposição dos países desenvolvidos, da tentativa de estabelecimento da chamada Nova Ordem Econômica Internacional e do lançamento do processo de globalização econômica e de iniciativas correlatas. 

“Novos temas” ganham o primeiro plano, como as questões dos direitos humanos, da mulher, do combate ao narcotráfico, e se abre uma breve era das grandes conferências multilaterais, das quais a Conferência do Rio sobre meio ambiente e desenvolvimento é paradigmática.

A partir de 1992, uma nova política se afirma, em consequência do esboroamento da URSS e do bloco socialista, do fim da confrontação Leste-Oeste e da proliferação de conflitos locais e regionais. Durante um breve momento, os membros anglo-saxões do Conselho pareciam inebriados pelo poder. 

O período após os atentados do 11 de setembro de 2001 é especialmente marcado pela securitização das discussões multilaterais, com o combate ao terrorismo ofuscando totalmente outros temas e a perspectiva de solução pacífica de controvérsias. Significou, igualmente, uma atitude mais sóbria por parte daqueles membros.


Contudo, o Conselho de Segurança passa a interferir em aspectos que antes não lhe diziam respeito, como os da ordem interna, em especial dos países menos desenvolvidos da África e da consolidação institucional da ONU, de modo a trazer essas questões também para a esfera de segurança.

Hoje, as Nações Unidas vivem sua reforma estrutural como um problema inadiável, tendo em vista que, após quase setenta anos de existência, uma atualização de sua estrutura se tornou fundamental e foi estimulada pelas transformações na ordem política e econômica global. 

fonte: Ronaldo M. Sardenberg - O Brasil e as Nações Unidas - Funag 2013 

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